*Publicado na coletânea do VII Concurso Municipal de Conto de Niterói em 2008
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Ela queria fugir. Não sabia pra onde,
não sabia como. Só sabia que não agüentava mais ficar onde estava. Fechou os
olhos, respirando profundamente, a cabeça e as costas apoiadas na porta que
batera com força. Não agüentava mais tudo aquilo. Queria ir embora, ir pra bem
longe, e não ter mais que suportar tanto sofrimento.
Ela tinha tanta mágoa, tanta dor,
que nem lembrava mais o que era ser feliz. Nem sabia mais como sorrir. Não
vivia; sobrevivia. Passava os dias da mesma forma, sem nenhuma mudança, nenhuma
melhora. Sua vida continuava do mesmo jeito que sempre fora, medíocre, e isso
lhe doía cada vez mais. A cada ano que passava, a consciência da sua desgraça
aumentava. E ela não podia mais agüentar.
Trancou a porta do quarto, e se
permitiu deslizar por esta até sentar-se no chão, a cabeça pendendo para o
lado, as lágrimas se segurando para não rolarem por seu rosto, adiando o choque
entre a água morna de seus olhos na bochecha ainda quente da bofetada que
levara. Apertou os olhos ainda mais forte, impedindo as famigeradas de lavarem
seu rosto de porcelana. Por quê? Por que ela tinha que passar por tudo aquilo?
Por que não podia ter uma vida normal, como todo mundo?
Abriu os olhos lentamente, encarando
seus pés nas botas de cadarço que iam até quase nos seus joelhos. Abraçou as
pernas e enterrou a cabeça entre os joelhos, chorando toda a sua tristeza.
Cessou o choro, e se arrastou pelo
chão até uma tábua solta no assoalho. Soltou a tábua com cuidado, retirando de
dentro do buraco no chão algumas notas de dinheiro enroladas num elástico, e
uma pequena caixinha preta, que continha uma corrente de ouro com um medalhão,
que fora da avó. Beijou o medalhão, e o colocou em volta do pescoço,
escondendo-o por baixo da blusa preta. Ergueu-se agilmente, escutando a mãe
bater na porta. Ignorou o chamado.
Abriu a porta do armário, tirando de
dentro uma mochila grande e vermelha, e começou a meter ali algumas roupas e
qualquer coisa que lhe fosse útil; meteu também o dinheiro, alguns livros e
CD’s que estimava, assim como seu disc-man,
um caderno e uma caneta; não podia ficar sem escrever. Vestiu o casaco de
capuz, jogou a mochila nas costas e saiu do quarto. A mãe estava na área de
serviço, e não viu quando ela fechou a porta da casa atrás de si, deixando um
pedaço de folha de caderno rabiscado no chão: “Adeus”
Sua vida sempre fora igual desde bem
pequena; ela não lembrava direito se um dia fora diferente. Morava num
apartamento pequeno, de dois quartos com a mãe e o pai, que brigavam
constantemente pela falta de dinheiro. A lembrança mais remota de Lúcia era de
estar ali, no mesmo quarto, encolhida num canto, escutando a briga entre eles.
O tempo foi passando, e ela foi
crescendo naquele ambiente instável, o pai e a mãe sempre infelizes,
trabalhando fora em tempo integral para sustentar a ‘família’.
Lúcia cursava o Ensino Médio, e
quando não estava na escola estava andando a esmo pelas ruas ou trancada no
quarto escrevendo e escutando música. Não gostava de fazer as tarefas
domésticas, só fazia-as quando era obrigada pela mãe, que sempre reclamava de a
filha ser uma imprestável. Mas a garota nunca se deixou magoar por essas
ofensas; já estava acostumada. Mas sonhava em melhorar a sua vida, e a da mãe
também, para que essa parasse de infernizá-la com suas queixas e injúrias.
Agora, com seus dezessete anos, às
vésperas do vestibular, não sabia que rumo dar à sua vida. E era tanta pressão:
da escola, da mãe, do pai, do mundo. Sempre fora uma aluna exemplar, sempre
ganhara bolsas de estudos na escola, mas nesse último ano, estudar parecia
impossível. Não tinha ânimo, não tinha vontade de estudar, de viver, de ser
alguém; a mãe sempre lhe atirava na cara que acabaria uma fracassada, como ela;
talvez fosse verdade. Não, tinha que ser forte; tinha que lutar para ser alguém
melhor, alcançar os seus sonhos.
E quais eram os seus sonhos?
Atualmente, deixar aquela casa, aquela vida que a fazia doente. E depois?
Depois, não sabia. Descobriria um jeito de ser feliz. Longe dali.
E naquela tarde, tinha sido a gota
d’água. Chegara em casa com uma nota baixa em uma prova, e a mãe lhe recebera
com tapas e palavras duras. Pensando bem, a surra não fora despropositada. Já
há algum tempo Lúcia vinha desrespeitando a mãe, não cumprindo suas ordens e
chegando sempre tarde em casa.
E ela nunca estudava, correndo o risco de perder a bolsa de
estudos e acarretando mais problemas financeiros. E o recente problema
alcoólico do pai estava deixando sua mãe ainda mais louca e sem saber o que
fazer. Teve pena. Mas, ao mesmo tempo, achou que a melhor maneira de ajudar sua
pobre mãe seria indo embora para sempre, já que ela era mesmo um estorvo tão
grande. Com esse pensamento, atravessou a rua movimentada do centro da cidade,
já fora do prédio em que desejava não ter mais que morar, caminhando em direção
à rodoviária.
Mesmo decidida a trilhar seu caminho
sozinha no mundo, numa outra cidade, entre favores, caronas, bicos e qualquer
coisa que aparecesse, continuava a se sentir culpada por deixar a mãe. Mesmo
que essa nunca tenha parecido amá-la. Do pai, sabia que não sentiria saudades;
tinha ódio de tudo o que ele fizera a ela e à sua mãe, e novamente pensou em
como ela sofreria sem a filha para ampará-la. Estaria Lúcia sendo egoísta ao
pensar somente em sua felicidade? Afinal, se sua mãe cobrava tanto que ela
tirasse boas notas e conseguisse entrar numa faculdade pública, não é por que
ela a amava e queria o melhor para ela?
No saguão da rodoviária, que não era
tão longe de sua casa, viu várias pessoas de todos os tipos, indo e vindo de
vários lugares. Para onde ela deveria ir? Qual seria o seu lugar no mundo?
Londres, pensou, com um sorriso amargo. E percebeu que fugindo dessa maneira
ela só estaria tornando o sonho mais impossível ainda. Mas, talvez, ela pudesse
ser descoberta em algum bar de uma cidade qualquer, como uma excelente cantora
e então ficar famosa e ir morar em Londres. Acontecia
o tempo todo, certo? Não, pensou Lúcia novamente. Nem ela acreditava mais nas
próprias mentiras que inventava para se sentir melhor.
A garota permaneceu na rodoviária
até anoitecer, o que durou mais ou menos umas duas horas, pensando no que
fazer.
E, então, veio o medo. O medo de se
descobrir sozinha no mundo, sem família, sem amigos, sem casa, sem ninguém.
Sozinha num bar de beira de estrada, sob condições que ela nem queria imaginar.
Pensou no que a mãe faria quando visse que a filha tinha fugido. Ficaria
satisfeita? Ligaria para a polícia e lhe daria uma surra quando a encontrassem?
Ou será que nem se importaria? Ou, quem sabe, ficaria terrivelmente abalada e se
arrependeria de todo o mal que lhe fizera?
Ela não podia fazer isso. Não podia
simplesmente ir embora. Afinal, que tipo de filha era ela? Que tipo de ser
humano abandona a mãe à própria sorte, quando esta nunca fez nada mais que
desejar que ela fosse feliz, mesmo que expressasse tal desejo de forma meio
torta? E, depois, Lúcia e a mãe nem sempre foram inimigas. Quando ela era
criança, sua mãe era sua maior heroína, seu refúgio. Mas, com a chegada da
adolescência e das grandes crises familiares, as duas mulheres foram se
afastando. Mas ainda havia tempo. Elas podiam voltar a ser amigas. Só
precisavam conversar. Nem tudo tinha que ser resolvido com brigas e lágrimas.
Ainda havia esperança, certo?
Lúcia correu de volta para casa e,
quando ia atravessar a rua em frente ao prédio que morava, avistou a mãe, aos
prantos, sendo amparada pelo porteiro, olhando por todos os lados, procurando.
Olhou para a frente, viu a filha, e sorriu de alívio. “Mãe...” A garota chorou,
e antes que pudesse fazer qualquer movimento, a mãe veio em sua direção,
atravessando a rua sem olhar para os lados. Um carro buzinou e freou antes que
uma tragédia acontecesse, e mãe e filha se encontraram no meio da rua, parando
o trânsito, em meio a buzinas e xingamentos dos motoristas irados.
“Me desculpa, mãe, eu não devia ter ido
embora...” “Minha filha, vamos conversar em casa. Eu sei que as coisas estão confusas, mas
nós duas vamos conseguir resolver isso juntas.”
O porteiro encaminhou mãe e filha de
volta para o prédio antes que o guarda pudesse multá-las por obstruir o
trânsito, e as duas voltaram para casa, abraçadas e de mãos dadas.