quinta-feira, 28 de abril de 2011

Fantasmas II

Virei a esquina e quase que meu sorvete se esparrama na calçada. Ali, na minha frente, estava um fantasma. Fiquei completamente imóvel e sem ação. O que se faz numa hora dessas? O fantasma parecia tão apavorado quanto eu, o que não é surpresa - eu, para ele, sou um fantasma também. Ficamos os dois mudos, com os olhos esbugalhados, de frente um para o outro. Sentia o meu sorvete escorrendo pelos meus dedos e pingando sobre o meu sapato, mas eu não podia fazer nada. O choque era grande demais. Aquele fantasma pra mim já estava morto há muitos anos.

Quando o sorvete derreteu por completo e eu deixei a casquinha escorregar para o chão, o cachorro dele avançou e começou a comer os restos e lamber os meus sapatos. Aquele cachorro levantou a cabeça e me reconheceu, mas não teve medo de mim como o dono. Dizem que animais enxergam espíritos e convivem bem com eles. O celular tocou e despertei do transe. Atendi, balbuciei palavras sem saber se faziam sentido e desliguei. Meu fantasma particular abriu um sorriso nervoso, puxou a coleira do cão e murmurou coisas inaudíveis. Meu rosto se descontraiu e então eu ri. E o fantasma riu também. Não trocamos nada além de gargalhadas.

Continuamos nossos caminhos, cada um pra um lado. Mas sei que não preciso ter medo deste fantasma num próximo encontro. Da próxima vez, vou até arriscar tocá-lo pra saber se é de carne e osso.

Fantasmas

Não tenho medo dos que já deixaram esse mundo; mas me apavoro só de pensar em encontrar alguém que não faz mais parte do meu mundo.

Linha cruzada

Vagava eu pelo cinzento mundo, em meu silêncio surdo, com os ouvidos mudos.
E subitamente me alcançaram uns sons; palavras. Lindas. Cor-de-rosa.
Encheram minha alma de alegria, transformaram minhas feições em um grande sorriso.
Busquei a fonte da minha felicidade; encontrei quem fizera tão singela declaração.
Estava de costas e falava ao telefone; sorria.

Desmoronei.
Meu mundinho voltou a escurecer, um vento frio passou por mim.
Aquelas palavras, tão lindas, tão doces, tão amorosas...
Não eram pra mim.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Fugas

Quando a realidade não parece muito atraente,
Alice escapole para a toca do coelho
Adormecida cai num sono profundo
Sereia foge do mar
Uma princesa se põe a cantar.
Eu fujo para o meu mundo particular.
(uns dizem que é cor-de-rosa, já penso que está mais para cinza)
Ouço música
Leio livro
Escrevo poesia
E sonho.
Escapo para a ficção das minhas vidas inventadas.
E fico lá.
Até acordar. (mas um dia não precisarei mais)

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Observação

Toda a sua essência se concentrava no silêncio de um olhar.

E num mero vacilo, se perdia para sempre na vastidão de outros olhares que nada dizem.


-.-.-.-


Ela, que pouco falava com a boca, muito dizia com os olhos.

E o que não dizia era tudo o que importava saber.


-.-.-.-


Não era tristeza que trazia nas grandes órbitas escuras.

Mas um silêncio tão profundo que era de fazer chorar.

Porém quando sorria,

junto com os cantinhos tímidos dos lábios que subiam,

iluminavam-se os olhos de lágrimas:

era esse seu jeito de alegrar.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

A Outra

Alguém roubou minha identidade. Passou-se por mim e virou tudo de cabeça pra baixo. Não fui eu, não fui eu, tento explicar. Mas a outra é exatamente igual a mim. Tem os mesmos traços, os mesmos gestos. O mesmo cabelo, os mesmos olhos. O mesmo sorriso de satisfação. E no entanto é diferente. Não sei qual das duas parece mais feliz. Se é que é possível chamar de felicidade o que separa uma da outra. Não é isso. É outra coisa que me separa de mim mesma. Uma coisa que não conheço. Algo que não sei decifrar. E enquanto tento descobrir o que deu errado, como consegui me dividir em duas e como fazer para voltar a ser apenas uma, a outra continua solta. Livre, sem limites, sem escrúpulos. Fazendo tudo o que tem vontade. Dizendo tudo que eu tenho vontade. Correndo tão veloz qué é impossível alcançá-la e aprisioná-la novamente. O sorriso dela triunfa sobre a minha apatia, me mostra tudo o que eu quero ser e não consigo. Mas não se pode ser tudo, e isso ela não entende. De alguma forma, na divisão que foi feita, ela ficou pura emoção, e eu pura razão. Ela jamais vai me compreender. Eu jamais serei como ela. Não posso, nem devo. Mas como quero. E como temo. Temo ser ela e não ser mais quem sou. Temo ser eu e não poder mais ser ela. Que destino cruel antecipo para nós duas! Uma jamais será feliz, a outra será sempre infeliz. Separadas buscamos apenas a ilusão de ser, o almejo, o desejo, de algo que nem sabemos o quê. Necessito ser inteira novamente. Mas onde está minha outra metade? Por que fugiu de mim? Preciso costurá-la de volta em meu coração, como fez o menino que não queria crescer com sua sombra. Só assim poderei existir. Só então posso voltar a sorrir.

domingo, 3 de abril de 2011

uma noite qualquer

meu coração jamais encontrou conforto semelhante à sensação de bater junto ao seu.


nem minha pele sentiu tamanho arrepio só de estar em contato com a sua.


no escuro do seu quarto nossos corpos se encontram em sincronia e nossos cheiros se cruzam no ar.


meus cabelos se enroscam nos seus de tão perto que estão e poderiam ser tanto seus quanto meus.


o som do silêncio é lindo.


e acordar ao seu lado, mais ainda.